quarta-feira, 24 de junho de 2009

Microconto em 15 minutos da madrugada.

- A vida, como vai?
- A vida vai a mesma em tudo que isso diz, ou em verdade, vai ela a mesma em tudo que isso cala.
- Você fala feito literatura, e acho isso chato.
- Antes o fosse; em literatura o fim é pretexto para início qualquer. Nada seria escrito sobre este final sem lições que vivemos; qualquer ponto final em uma página em branco o escreveria melhor, e não há sentido em pontos finais, se finais o são.
- Que seja, não importa, não mais.
- Concordo, e até me surpreendo com isso.
- Se dizemos ambos concordar, algum de nós mente.
- E por que isso?
- A um de nós pertece esse corpo cá no chão, um de nós compartilha o podre que resta do que nele foi carne, a um de nós cabe carregá-lo, com todo o peso inequívoco do fungo e da carniça, sobre os ombros, aonde for.
- Nem o tinha notado.
- Mente.
- Minto.
-
-
-
- E que bonito foi um dia esse amor.
- Houve beleza, por momento fugidio que seja, em tudo que foi vivo e já não há em vida.
- Literária, você, olha só. Aquele que de nós mente, afinal, vai carregar esse cadáver consigo, é isso?
- É isso.
-
-
- Mentimos ambos, portanto?
- Eu, não.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Se mal cuidadas as lembranças.

Não raro se dá a situação em que o que de concreto temos em vida perde aos poucos a nitidez, menor é o controle que exercemos sobre ele, até que por fim reduz-se sem aviso ao espectro malacabado da memória. Pode-se bem dizer, e em verdade se diz com propriedade inquestionável, que é assim mesmo, que um dia seremos nós mesmos pouco menos que a lembrança nas mentes saturadas dos que ficaram, como esperar coisa outra do que levamos conosco? Ainda se diz mais, e ainda corretamente, que agradecidos deveríamos ser pela oportunidade a nós concedida de observarmos o que um dia foi e já não é desse camarote cedido pelo tempo, para que choremos pelo já chorado, aprendamos pelo um dia errado e sigamos em frente, por fim, e que feliz fiquemos, pois bem podia ser que o vivido repassado não pudesse ser e pediriamos licença para entrar em uma infinita sequência de erros iguais.
Bem aceita a bênção de se poder sofrer, e tudo mais que isso implica, e pouco não é, pelo já sofrido e todos esses etecéteras enfadonhos já citados, é aqui ressaltada a mazela que é conseguirmos o feito, ou observá-lo conseguido por outrem, de vermos maculadas as memórias dessas tais dores e sucessos. É possível, e que injusto que é. Não saberia descrever o método ou meios para tal, mas que não se duvide, é possível. E alcançado tamanho feito, restamos nós com o tumor que é uma lembrança pestilenta - faz duvidar do que de belo vivemos em absoluto, faz maior as amarguras quaisquer das quais já curtimos o ranço por tempo suficiente.
A mazela de uma memória é nosso passado maculado, e maculada está também aquela com quem o vivemos; pois então se conclui com tristeza que, se mal cuidadas as lembranças, pensaremos o já vivido como se, ao recordarmos ente querido falecido, pensássemos apenas em seu cadáver putrefento deitado rígido em seu velório.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Todo amor já foi coisa diferente.

Todo amor já foi coisa diferente; entre o instante anônimo do primeiro suspiro e o momento doceamargo do último engasgo, não deixa ele de mudar, como bem mesmo o vivente que o encerra. E se já não mais há eloquência entre olhos um dia tão falantes, que não se culpem córneas e cristalinos - é mesmo o amor que, ante o fim, se cala, e espera mudo para, em um último esforço altruísta, morrer só. E descontada a nobre intenção, fato é que, em amor, nunca se morre sozinho.
Bem verdade que pode ele, em sua dinâmica, crescer e fazer-se forte, e sem dúvida o faz; é o momento para mostrá-lo e exercê-lo - nada mais rico em estética que sujeito carregado por amor robusto. Desapego, se possível fosse haver, seria aqui recomendado, pois não demoram pernas a fraquejar, o ar faz-se faltoso, e tão mais cedo do que se espera, somos nós a carregar sobre os ombros o corpo débil do que foi um amor a dois. Até por fim largá-lo, que se vire só, já que só estou também, vá aonde vão os amores senis e por lá se realize até que finalmente se desfaça em qualquer coisa que sobre de um sentimento liquidado. Ou bem se pode guardá-lo em gaveta pouco usada, e aqui se pode ou não entender metáfora, e vez em quando abri-la somente para, em vista do fungo, do mofo e do pus, constatar em amargura: todo amor já foi coisa diferente.


Para amenizar um tanto o ranço amargo dessas letras, vai aqui uma amargura um tanto mais doce.


quinta-feira, 4 de junho de 2009

Pensamento aleatório de uma manhã cinzenta.

Recife nunca fica tão linda quanto em dias de chuva. Por mais autêntico que seja o azul no céu de um dia de sol, acabamos por nos render à estafa de por todo o dia, e todo dia, termos nossas miudezas menos radiantes constrangidas por uma beleza que não admite oposição. O sol em Recife é absoluto, e impõe a promiscuidade de uma alegria úmida comum a todos - é contrastante e quase marginal a intenção apenas de contrariá-la, com o cinza de um rosto ou de alma.
Por isso, em uma manhã de chuva como essa, cá com meu café por testemunha, aproveito a distração da tantas vezes constante vigília solar, e liberto pelo recinto as melancolias tantas que de outra forma estariam onde não posso vê-las, mas sentiria o pus que têm por hábito cultivarem quando em companhia somente delas mesmo. E que diferença é vê-las, notar seus traços e o que de belo se perde entre eles. É por demais óbvia a beleza de um céu azul; maior mérito é revelar a si mesmo o quão bonito pode ser seu interior em cinza.
E em um diálogo matinal com todas elas, ou com as que se deram ao atrevimento de mostrarem-se, nelas descubro o que me distingue e me define, desmistifico-as e percebo que talvez melhor esteja eu com elas. E que eu não precise de uma rara manhã cinzenta para perceber o quão eu triste eu seria sem minha tristeza.