segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Isso.


Eu cuspo em seu sorriso. E sei que os dentes não cessarão seu desfile, músculo algum hesitará em sua rigidez; é um sorriso todo esse em que cuspo, e não basta gesto solitário de amargura para que fraqueje nas certezas que o criaram e o mantêm. Mas não me tome por maldoso, nem tampouco pense que o desprezo. Se há qualquer sentimento que justifique o cuspe que pela sua boca agora escorre, é um primo sem nome da inveja, não lhe chamo o nome por nome não haver com que lhe chame; aqui, contudo, será isso o seu pronome.
Isso me coabita desde que soube, com idiota certeza soube, estar em espera pelo próximo passo. Tudo o que fui até então foi construído, conquista débil após conquista débil, em um mesmo ponto, onde estou parado sustentando uma vida que aguarda. Sobre mim, todos esses anos de pessoas e obras e frustrações minhas e frustrações delas e vitórias mesquinhas e expectativas e expectativas. Toda essa torre abobalhada esperando o próximo passo que lhe dará sentido. Talvez desmonte, por fim. Mas que desmonte.
E é isso, amigo, a razão por que lhe cuspo a face. Vejo-os andando em vida; em círculos, atabalhoados, mas andando, e felizes assim. Sorrindo. Ser feliz, talvez, é saber um lugar que seja seu. Eu não sou, até então, o meu lugar; minha boca, portanto, mantém-se cuspindo, sem tentar, covarde que é, o passo delicado de um sorriso.


Terminar com a pergunta abaixo faz sentido, acredito.



domingo, 26 de setembro de 2010

Débeis.

Do amor, em um corpo, pouco resta além do vazio que ocupava - não se leva consigo nada nobre, não há aprendizado que fique. Toda experiência desmonta, vai ao chão, e fica-se só, a cabeça entre as mãos, ruminando a constatação - "absurdo, absurdo". Foi assim após o primeiro, assim será por quantas vezes amor houver.

Todo amor nasce e morre em função dele mesmo; nada levamos que nos faça mais preparados para o próximo. Qualquer convicção contrária é tentativa débil de se ter controle - não há, não há. Fim de amor é ressaca eterna até a próxima dose; a embriaguez virá da mesma forma.

No fim, e encerrando de forma descompromissada um texto preguiçoso e sem objetividade, cada amor compartilha com outro, tão somente, a expectativa. Nascer amor é nascer a ansiedade pelo fim, e nenhum aprendizado anterior a faz mais confortável; e, até que chegue, seremos tão débeis como fomos por cada vez que, sorrindo frouxo, acreditamos que seria diferente. Débeis.



Esse texto está tão cretino e preguiçoso, que não vou nem relacionar alguma música a ele. É ele, sozinho, em toda sua cretinice.


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Cuspir uvas passas.

Não há quem não o seja; mesmo o mais cretino de nós é um arranjo atabalhoado de improbabilidades. Pensada assim de batepronto, é uma ideia com trejeitos de otimismo; que fascinante é pensar em poder esperar uma infinidade de absurdos de cada um desses anônimos rotineiros.
Seria, seria, e tão bom se fosse. Antes de pensar em canção ensolarada qualquer e assobiá-la calçada afora, saibamos, descubramos juntos não ser assim. É condição de ser pessoa a capacidade efervecente de secar toda exceção em potência, e concretizar apenas o esperado; e como o esperado vem se mostrando uma tendência. As pessoas são possibilidades decepcionantes. E as exceções, uvas passas sob o sol da flacidez de espírito.
Aqui temos estranha situação onde uma maioria concorda, débil, enquanto a minoria que resta não é nem metade do que aqui se fala. Eu falo de você, de sua mãe e do seu namorado.
E que faz você, seu maldito?, além de cuspir amargura neste canto miúdo, emprestando algum glamour de pessoas tão maiores que você? Absolutamente nada além do que aqui se vê. Sentarei em qualquer banco vago pela manhã, estóico na constatação de poder muito bem ser objeto do que escrevo, ou de poder vir a ser; mas até lá, não deixo de cuspir. Cuspir uvas passas.

domingo, 22 de agosto de 2010

; esse.

Há vidas que não são viagens, mas eternas salas de espera sem porta ou itinerário visível; dessas, não espere mais que enfado e golfadas úmidas de um ar saturado. Que medo tenho de, em dia maldito, me encontrar sentado sobre uma mala contendo o pouco que trouxe comigo, para não ser mais aberta. Deve-se esse receio, veja bem, ao equívoco comum em que caimos a cada vez que falamos em portas que abrimos e fechamos, em vida. Não há portas; para falarmos em portas, temos de, ao menos, considerarmos a escolha de abri-las. Mas não, a vida não comporta maçanetas; se nada mais, em vida há buracos. E são por eles que, ao se abrirem sob nós, sem aviso, passamos à outra passarela pela qual daremos continuidade à caminhada enfadonha rumo ao próximo.

Da confusão desse parágrafo malefeito acima, retirem apenas isso - escolhas até há, mas somente até o ponto em que o chão se arrebenta sob os pés. Não há alternativa à queda.

O medo que de mim fez casa tem por razão de ser a possibilidade concreta de, sem que ao menos perceba, encontrar-me esperando, e nada mais. A vida não sobrevive estática; apenas parou, passa a apodrecer. Uma sala de espera em que nado sozinho no pus de minha vida carcomida - esse é meu medo; esse.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

por uma vida que é mudança.


É a vida, ou deveria ser, sucessão de mudanças em cadeia cujo fim é a mudança última, promovida pelos vermes. Pensando nisso, e considerando se tenho qualquer controle sobre elas, descubro-me nu, um corpinho de carnes violadas em meu próprio vagão desgovernado assistindo, a cada metro, a caminhos possíveis ficando para trás, por conta da lentidão da incerteza, pelos pesos de minhas fraquezas amarrados aos tornozelos, pelo medo de pular em falso para o próximo vagão. Ante o medo, nunca deixei de ser criança; por mais que racionalize e elabore, toda explicação é menos eloquente do que seria um curto ganido. A vida me faz cadela de rua.

É medo de tudo - ou ao menos, de tudo à frente; não me decidi ainda se sou eu que vou andando a seu encontro, ou se estou parado e me é jogado à cara. E esse tudo termina por caber, e ganha força, no espelho, quando me observo com calma. Qual seria, qual será, a feição desse rosto, se lhe retratam a alma? Fará a vida de mim o que costuma fazer em seus caprichos - tomar-me os sonhos e devolver as migalhas, e que faça eu o que puder delas? Termino essa frase e solto um ganido. Continuo.

Penso, temo; olho meus pares, meus amigos, os anônimos todos que compõem minha rotina; quem são eles, se tomadas-lhes as roupas e as carnes; se lhes sobra apenas o reflexo por companhia? Creio, e creio feito um imbecil, que são o mesmo corpinho de carnes violadas que sou, trafegando em velocidade estúpida por uma vida que é mudança. Não cansamos de temer os mesmos medos, guardando-os tal qual nossas vergonhas, com todo esmero do pudor - os mesmos medos sob um silêncio solidário?

Ah, se fôssemos despudorados. Se contássemos uns aos outros nossos medos, descobriríamos sê-los todos os mesmos. E ficassem eles talvez velhos, de tão temidos. E morressem eles talvez cansados, de tão vividos; e viriam outros, novos - se mais nada, ao menos novos. Mas não recomendo o otimismo; continuaremos, assim deste jeito, calados, e para sempre ganindo desgovernados, essas cadelas de rua que somos.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

pela pureza do grotesco.


Quão solitária é a liberdade de uma perversão. Em comum, partilhamos todos o que, da vida, fez-se necessário; as mundices todas que, em última análise, possibilitam a sobrevivência do animal retoricamente disfarçado, mas que ainda necessita de comida que pela boca o adentre e em seguida pelo cu o deixe discretamente, uma cama onde se possam deitar os pecadilhos todos a serem esquecidos pelos sonhos, atividade suficiente para que não lhe caiam flácidos os músculos - ainda que a mente o faça. Um trabalho respeitável, uma hora de almoço durante a qual o façam rir seus colegas, passeios no shopping, cinema compreensível, a embriaguez do chopp potencializando as mesmas risadas da hora do almoço. Tudo o que lhe é necessário é pelo homem compartilhado promiscuamente - o abraço suado da rotina não lhe permite a solidão.

Que faz então alguém quando já quitado o dia? Concordemos ser o homem animal social; que é o homem, contudo, quando findas as obrigações que o brutalizam? O que sobra quando é morto o animal? Pouco pudor há em observar o indivíduo nas horas poucas que lhe restam antes do sono, quando despe a carcaça animal do todo dia, e, nu, poê-se a exercer sua humanidade. O homem é humano somente na presença de suas perversões.

Permita-se a beleza da solidão despudorada. Beleza tantas vezes emancipada da estética, exalada apenas pela pureza do grotesco - na solidão, distiguem-se os homens; não há perversão que se repita, somos definidos pelas nossas vergonhas. A perversão é a impressão digital por cada um deixada sobre a vida, e nada mais sobre ela deixaremos.

Talvez, e aqui fica a incerteza de uma reflexão sem compromissos, nos façamos mais humanos quando soubermos compartilhar nosso grotesco, nossas vergonhas. Bem possível é que, após o choque inicial, percebessemos termos passado a vida sob a proteção débil do medo e da intolerância, apontando as mazelas de cada um, quando somos, afinal, todos iguais na lama encantandora do indivíduo; findaria, por fim, a solidão, e teríamos uns aos outros para desfrutar o desbunde de nossa humanidade.


Não foi esquecida a proposta inicial do blog, trabalho conjunto entre mim e os grandes; cito em minha defesa, portanto, Nelson Rodrigues, quando afirma que se soubéssemos o que cada um faz entre quatro paredes, não nos daríamos bom dia. Bom dia.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

, sem ao menos saber.



As pessoas, esses fungos que, se deixarmos, nos tomam a vida inteira, sem ao menos saber. Se vivê-las significa reservar-lhes espaço vital de nossa lembrança, de nossa vida, preenchido por tudo que resultou de conhecê-las, uma vez que se vão, que nos resta? Aos poucos, e, por vezes, de um só golpe, se esmigalha tudo a que se podia recorrer, e escorre sabe-se lá aonde, que desconheço onde fica o que nem à lembrança mais pertence. Restamos então, cá conosco, com este espaço vazio, esta ausência, onde sopra vez ou outra a brisa de uma saudade; dentro de nós, qualquer eco nos pertence.
Recomendo, portanto, evitar-se despedidas; são aborto duplamente cruel - pelo passado que, a partir de então, se põe a esmigalhar-se, e pelos momentos todos para os quais já havíamos até reservado a parcela de nós mesmos a ser preenchida; essa nunca deixará de ser lacuna, e que a frustração tome, aos poucos, as paredes.
Tenho saudades soprando por todos os vazios que em mim me deixaram, sem nem saber. Chamo por eles todos, os que se foram, e por resposta tenho apenas minha voz, cada vez mais débil, cada vez mais fraca. Ausência não tem cor, são buracos escuros apenas, essas lacunas de que falo.
Dentro de mim, eu, minha voz débil, e as migalhas que restam no chão.
As pessoas, esses fungos que, se deixarmos, nos tomam a vida inteira, sem ao menos saber.

Almejando à coerência e ao amparo dos grandes, Morrissey concorda que "life is a succession of people saying goodbye".


quarta-feira, 7 de julho de 2010

apenas pela beleza do gesto



Sou um ingrato para com as letras. A elas recorro tão somente em momentos nos quais eu por mim mesmo não me sustento, e cá venho forrar minha cama com orações e períodos que me expliquem e me tragam qualquer leveza. Não se decepcionem, pois meu pecado é o mesmo, e cá estou novamente, de novo e sempre.
Tenho duvidado, a sério, de minha sanidade. A maneira pela qual teço expectativas sobre o que, e quem, me rodeia tem se mostrado turva e equivocada - ébrio, tenho estado, em espírito, sem descanso. Sobriedade deve haver em vida, ou onde se possa buscá-la, quando necessário. E onde posso eu buscá-la, agora que me é necessário? Creio ter chegado aonde queria ao começar a escrever, hoje; é necessário haver âncoras para não se perder em todo o infinito de uma individualidade. O indivíduo é entorpecente, quando não há mais convergência com todo resto. E eu, cá comigo, como me fixar novamente alguma razão? Qual minha âncora?
Recorro às letras, novamente, de novo e sempre. É exercício curioso o de escrever. Fácil de se concluir ser um canal direto entre o que há de ideia e o texto concreto, via expressa da cabeça ao papel. Também o é. Que incrível é perceber, contudo, que vêm também, do papel à cabeça, conclusões, ideias, sentimentos, novos e prontos para serem pensados, sentidos, praticados; e deles, tanto, se pode criar. E espero criar minha âncora à sobriedade, a partir deles. Portanto escrevo para que me venha algo novo, e que possa eu, mais uma vez, recorrer às letras, e que elas me amem também, se por nada mais, apenas pela beleza do gesto - de escrever.

A ideia sobre "amar pela beleza do gesto" vem dessa cena do filme "As canções do amor". Está provado que só é possível falar de amor em francês, por sinal.