domingo, 22 de agosto de 2010

; esse.

Há vidas que não são viagens, mas eternas salas de espera sem porta ou itinerário visível; dessas, não espere mais que enfado e golfadas úmidas de um ar saturado. Que medo tenho de, em dia maldito, me encontrar sentado sobre uma mala contendo o pouco que trouxe comigo, para não ser mais aberta. Deve-se esse receio, veja bem, ao equívoco comum em que caimos a cada vez que falamos em portas que abrimos e fechamos, em vida. Não há portas; para falarmos em portas, temos de, ao menos, considerarmos a escolha de abri-las. Mas não, a vida não comporta maçanetas; se nada mais, em vida há buracos. E são por eles que, ao se abrirem sob nós, sem aviso, passamos à outra passarela pela qual daremos continuidade à caminhada enfadonha rumo ao próximo.

Da confusão desse parágrafo malefeito acima, retirem apenas isso - escolhas até há, mas somente até o ponto em que o chão se arrebenta sob os pés. Não há alternativa à queda.

O medo que de mim fez casa tem por razão de ser a possibilidade concreta de, sem que ao menos perceba, encontrar-me esperando, e nada mais. A vida não sobrevive estática; apenas parou, passa a apodrecer. Uma sala de espera em que nado sozinho no pus de minha vida carcomida - esse é meu medo; esse.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

por uma vida que é mudança.


É a vida, ou deveria ser, sucessão de mudanças em cadeia cujo fim é a mudança última, promovida pelos vermes. Pensando nisso, e considerando se tenho qualquer controle sobre elas, descubro-me nu, um corpinho de carnes violadas em meu próprio vagão desgovernado assistindo, a cada metro, a caminhos possíveis ficando para trás, por conta da lentidão da incerteza, pelos pesos de minhas fraquezas amarrados aos tornozelos, pelo medo de pular em falso para o próximo vagão. Ante o medo, nunca deixei de ser criança; por mais que racionalize e elabore, toda explicação é menos eloquente do que seria um curto ganido. A vida me faz cadela de rua.

É medo de tudo - ou ao menos, de tudo à frente; não me decidi ainda se sou eu que vou andando a seu encontro, ou se estou parado e me é jogado à cara. E esse tudo termina por caber, e ganha força, no espelho, quando me observo com calma. Qual seria, qual será, a feição desse rosto, se lhe retratam a alma? Fará a vida de mim o que costuma fazer em seus caprichos - tomar-me os sonhos e devolver as migalhas, e que faça eu o que puder delas? Termino essa frase e solto um ganido. Continuo.

Penso, temo; olho meus pares, meus amigos, os anônimos todos que compõem minha rotina; quem são eles, se tomadas-lhes as roupas e as carnes; se lhes sobra apenas o reflexo por companhia? Creio, e creio feito um imbecil, que são o mesmo corpinho de carnes violadas que sou, trafegando em velocidade estúpida por uma vida que é mudança. Não cansamos de temer os mesmos medos, guardando-os tal qual nossas vergonhas, com todo esmero do pudor - os mesmos medos sob um silêncio solidário?

Ah, se fôssemos despudorados. Se contássemos uns aos outros nossos medos, descobriríamos sê-los todos os mesmos. E ficassem eles talvez velhos, de tão temidos. E morressem eles talvez cansados, de tão vividos; e viriam outros, novos - se mais nada, ao menos novos. Mas não recomendo o otimismo; continuaremos, assim deste jeito, calados, e para sempre ganindo desgovernados, essas cadelas de rua que somos.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

pela pureza do grotesco.


Quão solitária é a liberdade de uma perversão. Em comum, partilhamos todos o que, da vida, fez-se necessário; as mundices todas que, em última análise, possibilitam a sobrevivência do animal retoricamente disfarçado, mas que ainda necessita de comida que pela boca o adentre e em seguida pelo cu o deixe discretamente, uma cama onde se possam deitar os pecadilhos todos a serem esquecidos pelos sonhos, atividade suficiente para que não lhe caiam flácidos os músculos - ainda que a mente o faça. Um trabalho respeitável, uma hora de almoço durante a qual o façam rir seus colegas, passeios no shopping, cinema compreensível, a embriaguez do chopp potencializando as mesmas risadas da hora do almoço. Tudo o que lhe é necessário é pelo homem compartilhado promiscuamente - o abraço suado da rotina não lhe permite a solidão.

Que faz então alguém quando já quitado o dia? Concordemos ser o homem animal social; que é o homem, contudo, quando findas as obrigações que o brutalizam? O que sobra quando é morto o animal? Pouco pudor há em observar o indivíduo nas horas poucas que lhe restam antes do sono, quando despe a carcaça animal do todo dia, e, nu, poê-se a exercer sua humanidade. O homem é humano somente na presença de suas perversões.

Permita-se a beleza da solidão despudorada. Beleza tantas vezes emancipada da estética, exalada apenas pela pureza do grotesco - na solidão, distiguem-se os homens; não há perversão que se repita, somos definidos pelas nossas vergonhas. A perversão é a impressão digital por cada um deixada sobre a vida, e nada mais sobre ela deixaremos.

Talvez, e aqui fica a incerteza de uma reflexão sem compromissos, nos façamos mais humanos quando soubermos compartilhar nosso grotesco, nossas vergonhas. Bem possível é que, após o choque inicial, percebessemos termos passado a vida sob a proteção débil do medo e da intolerância, apontando as mazelas de cada um, quando somos, afinal, todos iguais na lama encantandora do indivíduo; findaria, por fim, a solidão, e teríamos uns aos outros para desfrutar o desbunde de nossa humanidade.


Não foi esquecida a proposta inicial do blog, trabalho conjunto entre mim e os grandes; cito em minha defesa, portanto, Nelson Rodrigues, quando afirma que se soubéssemos o que cada um faz entre quatro paredes, não nos daríamos bom dia. Bom dia.